Tourada dos Estudantes com dias contados (Entrevista DI)
A Tourada dos Estudantes pode acabar este ano. Miguel Sousa Azevedo, que participou uma dezena de vezes na iniciativa, considera que é tempo de refletir sobre o futuro da tradição carnavalesca.
A Tourada dos Estudantes pode não se realizar este ano por falta de instalações para a construção dos adereços para o desfile do domingo de Carnaval na Rua da Sé. Considera que ainda há tempo para ultrapassar esta dificuldade?
Se, efetivamente, for esse o único obstáculo à realização da Tourada dos Estudantes, penso que ainda será possível fazer alguma coisa. Embora algo tardiamente, o grupo que pretende continuar a fazer a Tourada, está a apelar à ajuda de quem a queira e possa dar. É indispensável haver um espaço para fazer as construções - que depois abrilhantam o espalhafatoso cortejo e o espetáculo na praça -, com um mínimo de condições, sendo que esse é um problema crónico.
Nos últimos 25 anos houve perto de dezena e meia de locais - uns melhores, outros piores - a albergar as construções que, mais que um sítio de trabalho, eram o local de reuniões, de festas, de caloiradas, de um convívio que se estendia até para fora dos participantes da garraiada.
Ou seja, estamos a falar de uma parte fulcral de todo o desenrolar de um ano de Tourada dos Estudantes que, caso seja apenas uma coisa arranjada à pressa, também desvirtua o que é a tradição.
Caso se confirme a não realização da Tourada dos Estudantes poderá ser o fim da tradição?
Recordo que, nos últimos anos, tem sido quase dramático ter essa nossa velha tradição na rua. E o que tem acontecido, com todo o respeito pelos intervenientes, já não é a Tourada dos Estudantes, mas uma espécie de recriação do evento, onde apenas o cortejo se realiza da mesma forma. E não há que atribuir culpas a ninguém, nem dizer que antigamente é que era bom.
O paradigma social de Angra também mudou e a Tourada dos Estudantes, que nos anos 90 perdeu - e ainda bem -, um certo estatuto de elite urbana, também se ressentiu de tudo isso. Os jovens de hoje estão espalhados por várias escolas, têm imensas solicitações e até o próprio Carnaval - e aqui não estou a falar de danças nem de bailinhos, atente-se - passou a ser vivido de outra forma dentro da cidade.
Dou um exemplo também gritante, que é o cartaz que anuncia a tourada, e que se distribui pelas ruas nas semanas que a antecedem, que foi "aguentando" o decréscimo de popularidade do evento.
E nunca deixou cair a crítica social mordaz que é o verdadeiro código genético de uma festa que conta quase 100 anos de existência. E que atravessou a Ditadura. Esse é outro ícone que se poderá perder, infelizmente.
Como se explica o desinteresse por aquela que foi durante décadas uma das mais marcantes formas de celebrar o Carnaval em Angra do Heroísmo?
Há uma razão que aponto há anos e que tem a ver com o desaparecimento do toureio da garraiada. Ou seja, a parte "séria" da Tourada dos Estudantes passou a resumir-se aos forcados que, justiça lhes seja feita, também "seguraram" - e muito - a restante empreitada em várias ocasiões.
Mas a verdade é que, sendo a Terceira uma terra de aficionados, e tendo sido a Tourada dos Estudantes o berço de quase todos os nomes grandes da nossa tauromaquia, o facto de não termos jovens aspirantes a novilheiros, e muito menos futuros cavaleiros, resumiu o espetáculo aos números cómicos - na minha modesta opinião, já sem qualquer ordem ou temática - e a uma sucessão de pegas. E o público deixou de aparecer. Sem público, a Tourada dos Estudantes deixa de ter razão de existir. E sei que esse vai ser um rude golpe, especialmente para aqueles que se agarraram à nostalgia dos seus tempos de liceu. E não perceberam que tudo hoje está diferente.
Sem alongar demais os desabafos, também não concordo que se criem associações e se vá em busca de dinheiros públicos para organizar a Tourada dos Estudantes.
Se ela não for uma tradição sustentável e independente, o mote da sua criação já estará morto e enterrado.
Quais são as memórias que guarda de uma dezena de participações na Tourada dos Estudantes?
Entrei sempre como cómico na Tourada dos Estudantes, e fiz parte da Comissão Organizadora em 1997, na edição em que o Tiago Pamplona se estreou como cavaleiro, penso que participei da festa dez vezes, mesmo depois de já não ser estudante em Angra. Lembro-me de coisas giras como o delinear das personagens, roupas, etc, para o cortejo, com direito a reunião magna para definir bem as coisas; os dias da Tenta, que eram uma outra festa, em que "invadíamos" a cidade de manhã, para depois rumar ao mato, numa viagem de autocarro que só vista. Em 1997, fomos buscar o pessoal ao Liceu de Angra vestidos de pescadores, com caniços e a pescar, em cima do autocarro! Os domingos da volta à ilha a anunciar a tourada - uma semana antes de se realizar - acumularam um sem fim de histórias e episódios...posso recordar uma entrada dos cómicos no Pavilhão Municipal, ou num jogo de futebol, que certamente quem viveu não esquece.
Mas sublinho, especialmente, uma amizade e uma união muito grandes, com enorme respeito pelos mais velhos e que nos ajudavam a alinhavar todo o espetáculo. Que era isso mesmo, um espetáculo, com uma espécie de coreografia "desorganizada", mas sem um excesso de atropelos e onde era a comissão que decidia tudo.