O conforto do Natal
A época natalícia provoca-nos um conjunto de sensações que mais nenhuma altura do ano consegue juntar.
Mesmo que, pelo início das aulas, nos surja um cheiro a livros novos e lápis de cor; que no quente do verão a ressalga e o sol nos façam viajar uns anos atrás; ou que, pelos dias do São João, as pipocas e o algodão doce despertem um andar miúdo de criança.
A cada Natal que passa, e para lá das renovações do Cartão de Cidadão – cuja validade aumenta, enquanto a vida diminui –, evocam-se desejos e lugares comuns, mas a verdade é que continua a ser uma altura de reencontros, saudades e resoluções. Mesmo que pecando pela repetição, afinal, e no ano seguinte, se Deus quiser, cá estaremos todos. Novamente.
Não avanço sequer o que penso sobre as atuais motivações dos festejos em torno do nascimento de Jesus. O texto seria frio demais, e eu até sou uma pessoa acalorada. Mas o pico de vendas há muito que substituiu o carinho, a mensagem de amor deu lugar aos vouchers e ofertas imperdíveis para impulsionar o consumo, e até o lar de família se quer substituído pelas aldeias e vilas-Natal, onde a canalha sempre tira menos o juízo aos pais.
A festa de confraternização que nos criava uma ansiedade miudinha, que durava semanas e que quase só ia embora com o novo ano, é agora uma organização com fins lucrativos, onde as várias entidades tentam esmifrar aquilo que foi recebido a dobrar em novembro.
O contraste do que são a efetiva solidariedade e a vida real até se pode assistir na Missa do Galo. Pois se continua gente sem comer àquela hora, outros benzem a alma com luvas quentes, sobretudos novos e caxemiras.
E assim se passará mais um Natal, em que alguns irão devolver prendas “que não serviram” mal as lojas abram – isto após a digestão do peru e revirada que esteja a roupa velha -, enquanto outros, mais expeditos, aguardarão pelos Reis, na esperança de que os Saldos lhes possam melhorar o guarda roupa.
Resta pensar que, nestes tempos pandémicos e de incertezas, os cabazes e demais esmolas tenham podido debelar temporariamente a falta diária dos estômagos mais necessitados.
As importadas imagens de neve e alegria costumavam amaciar-me a alma. As luzes cintilantes eram um tónico para o olhar. Mas cada vez o são menos. E até percebi que não fui eu a amargar, o mundo é que se vestiu de felpa confortável para, por umas semanas, apenas disfarçar os remendos. Saibamos, pois, aproveitar o conforto do Natal.