Jogar ao sério
Jogar “ao sério” é uma atividade que muitos terão exercido durante a infância, ou mesmo a adolescência. A brincadeira, entre duas pessoas, consiste em olhar fixamente o parceiro, perdendo a disputa o que se rir primeiro. Haverá ainda as variantes de não pestanejar, não falar ou não desviar o olhar, como fronteiras para a derrota, mas, para campeões como eu, fixemo-nos – já que é esse um dos motes da coisa – na capacidade de não rir. Embora fazendo sempre com que o outro se “escangalhe”…
Não sendo uma modalidade desportiva, jgar “ao sério” é uma longínqua memória que, só passado muito tempo, percebi ser um muito eficaz teste à nossa personalidade. A mesma que, penso, tendo traços básicos de nascença, também evolui pela vida fora. Não sei é se sempre no melhor sentido.
Que me lembre, e para além das rijas batalhas com uma prima quase da minha idade, saí vitorioso em todas as disputas do joguinho que hoje resolvi recordar. E não tenho em vista grandes dificuldades vividas na ultrapassagem dos adversários de ocasião. Esses sucessos fazem cair por terra qualquer teoria relacionada com frieza ou calculismo associada aos bons desempenhos a jogar “ao sério”.
No fundo, o truque consistiu sempre em sorrir com o olhar, uma opção que hoje em dia bem pode ser utilizada, já que o ar apático e equivalente que as máscaras da pandemia nos oferecem pede mesmo um brilhozinho nos olhos.
Voltando ao jogo, e frisando que nunca fui um competidor acalorado ou obsessivo, o jogo “do sério” era uma tarefa corriqueira. Fixava então o olhar no adversário e, de corpo firme e concentração elevada – outra falha de ação que tenho aos rodos -, iniciava um “namoro” sem sorrir, que resultou em todas as vezes num bem disposto triunfo.
Li algures que essa será uma capacidade que os jogadores de Poker aprendem a aprimorar. Não sei se é mesmo assim, até porque todos os jogos coletivos de cartas me provocam uma estranha urticária. Esses e todos os outros em que temos de pensar muito, prever e ser pacientes. Alinham regras que são o oposto da minha forma de ser. E, sendo opcionais, vou-me dando ao gosto do afastamento.
Mas veio o assunto à baila porque jogar “ao sério” se vai tornando num desafio recorrente, à medida que os anos passam. Na mediatizada e supersónica sociedade dos nossos dias, cada vez menos importa a nossa verdadeira reação, que está cada vez mais concentrada em “emojis” e abreviaturas. O ser humano tende a uma uniformização que assusta, escorregando no rol das modas e frases feitas com uma facilidade estonteante.
Vai daí e até as discussões do dia a dia parecem ser sempre as mesmas, ditadas por redes e interesses que se avistam ao longe, e fazendo com que a própria seriedade – nem tanto a mesma do jogar “ao serio” – seja cada vez mais uma longínqua brincadeira de crianças.