“Baeta”. Crónica para saber de um amigo
Há cerca de uma dúzia de anos, neste mesmo mês de fevereiro, revi uma velha lista de aniversários. Folha e meia A4, com uma cor envelhecida e as datas felizes de pessoas e amigos que já não via há muito, ou de que quase não me lembrava.
Nesse dia fazia anos o “Baeta” - sempre lhe chamei apenas Paulo…Paulo de Ávila de Melo, como aliás preferia ser conhecido -, velho amigo de uma Angra já passada e que há muito tempo passou a deambular, errante, pelas ruas de Lisboa, depois de uma tormenta de atos de que não saiu vencedor. Já não o via há bastante tempo, condição que se mantém até hoje.
Conforme desabafei na altura, longe vai a solene apresentação do seu último livro “Ruas e Lugares da Praya (Notas para a sua História)”, no velhinho Salão Teatro Praiense onde, do alto da longa barba, da bengala e da gravata vermelha, fez garbo da sabedoria e investigação aplicadas. Sempre nos demos muito bem, numa razão de respeito que, ainda miúdo, também lhe soube impor. E que ele sempre entendeu.
A crónica de hoje é mesmo para saber do Paulo, de quem um amigo – o Nuno Santos - me enviou esta imagem, há alguns dias. Foi um companheiro próximo de uma juventude que já lá vai. E há muitos meses que não sei dele, nestes tempos estranhos em que o mundo muda a cada minuto.
Há uma dúzia de anos, o Paulo era figura comum da baixa lisboeta, onde sobrevivia da caridade alheia. Confesso que, das poucas vezes que passei pela capital, por duas delas fui propositadamente para aquelas bandas, a ver se o avistava. Mas nunca aconteceu.
“Paulo Jorge Xavier Dias de Ávila de Melo, nasceu na freguesia da Sé de São Salvador de Angra do Heroísmo no dia 2 de fevereiro de 1964”, podia ler-se no livro que atrás referi. E do qual ficou por escrever o segundo volume, assim como um outro sobre a presença espanhola entre nós. Mesmo se o Paulo ainda publicou “O Jogo do Pau na Ilha Terceira (contribuição para a sua história)” e “O Império da Caridade do Corpo Santo”.
O Paulo foi seminarista, historiador, genealogista, escritor, ceramista, missionário, viajante, humanista, pedagogo e guia turístico, como há uns anos recordou o Pedro Rocha, referindo que, da última vez que se tinham cruzado em Lisboa, “em vez de me pedir a habitual esmola para comprar uma refeição quente, o Paulo disse-me: Vai a uma livraria e compra-me um livro. Voltei ao hotel e deitei-me, doente, com as lágrimas nos olhos…”.
O Paulo despertava estas coisas nos amigos. Também nessa altura o Leandro Rosado me tranquilizou, dizendo que o tinha visto dias antes: “estava bem vestido, mendigando e apregoando aquilo em que acredita, um Deus bom”.
E o Heliodoro Tarcísio recordava “o seu carácter abnegado, seu desinteresse material, a sua solidariedade social, a generosidade, a boa disposição constante, a prolífica barba ruiva, que parecia crescer de um dia para o outro e aqueles incríveis e límpidos olhos azuis”.
Deve ter sido a recordação desse mesmo olhar que me fez escrever estas linhas. Há dois ou três anos, o Paulo mudou-se para Fátima, onde disse ao Duarte Monteiro ter encontrado uma paz e um acolhimento diferentes. Não sei se ainda por lá se mantém, nem como estará.
A nossa pequenez de terra não aceitou o Paulo como era. Ou como nem era. Coisa que ele também nunca facilitou. Mas tenho a certeza de que povoa hoje muitos corações. Que o lembram com energia e sorrisos. Só espero que estejas bem, meu amigo.