![A casa das bonecas de um outro dia...]()
Uma menina. Nascida como as outras, com todos os desejos e vontades que uma meninice de cidade poderia indicar. Certamente um mote simples para um conto de crianças, daqueles com bonecas e rendas, folhos e flores, perfumado da mais pura inocência e dedicado apenas aos mais pequenos. Poderia, mas não o será. O título, e mesmo esse mote das bonecas e da criancice vivida em família, servirá antes para uma breve analogia entre os desejos e a vida real. Entre os sonhos e os factos. Entre, no fundo, a poesia pensada e as palavras ditas e ouvidas. Mas sem estabelecer as comparações devidas, porque assim mesmo o texto corre em direcção aos pensamentos da tal menina, nascida em cidade grande, apaparicada em casa de gentes importantes, vinda para o campo e para os lugares pequenos onde tudo se recriou, onde os cheiros se transformaram, onde as recordações cedo se assumiram como âncora de vida, com todos os males e bens que encerra o uso de âncoras. Os olhares fraternos e as histórias de encantar, a fruta fresca e a sombra pronta eram traço comum, assim como o fogão caseiro, as galinhas, o ar de mar em assobio de um vento que soprava aos corações, como aqueles desenhados nas violas, que se tocavam sem razão ou por necessidade. Um ambiente de criação livre, de afectos mesmo que distantes, mas em que a flor da pele era suporte fácil, assim como a chuva ia caindo ou a poeira se levantava do velho caminho dos lugares pequenos. Até a pronuncia se alterara, os costumes trocavam as voltas, as roupas e os folhos estavam mais para as fotografias de remate rendilhado que para o toque com a terra húmida, com os bichinhos de conta ou as lagartixas, todas aquelas liberdades à distância de um passo, mas por vezes reprimidas ou acauteladas. Assim crescia a menina, assim continuavam pequenas as bonecas, embora grandes já para caber na sua casa de madeira e fantasia. A tal paragem que tardava e o tal silêncio que se apoderava das noites e manhãs. Sim, porque era no sonho que as bonecas mais dançavam e riam, talvez preparando um lanche de festa no novo dia, talvez enganando em seco um engolir de desgosto que se apressava em fugir. Tudo em torno da menina e das bonecas, tudo em redor de um rosto que se transformava pelo tempo. Não o dos anos passados, mas o das horas sem doce, das marés sem espuma ou das folhas sem flor de companhia. Esboçando um ar feliz aqui e ali a menina ia iludindo as bonecas, que ajeitavam a saia curta e prosseguiam a marcha das brincadeiras e das graças, dos jogos e cantorias, das cores e notas com que povoavam serões, mesmo que numa memória distante. O rumo ia apertando nas opções e contextos, resumindo-se a um mundo onde a cor por vezes faltava, ou onde os odores se lembravam, mas não se sentiam. Onde os sabores pareciam ter perdido condimentos, ou talvez seria o vento, o que levantava a poeira do caminho nos lugares pequenos, a resumir cada refeição. Seria isso, certamente, e sempre se escapava à rotina numa folha branca, onde se debruavam recados e se afagavam sentidos numa pequena manta de retalhos em esquecimento, urdida em ponto de solidão, criada na medida da partilha e do imaginário. E nunca mais aparecia a proporção real da menina face às bonecas, o tamanho do seu passo comparado aos pequenos sapatinhos pretos, ou a dança constante de surpresas que retalhava cada gota de dia num despertar sequioso. Por certo as bonecas tinham aprendido a angústia, e cabia agora à menina explicar-lhes que os sorrisos roubados pelos anos estavam guardados numa pequena caixa de madeira de faia, cuja chave ela trazia desde sempre presa num cordão ao pescoço. Mesmo se isso implicasse ir procurar a dita caixinha a um dos quartos da casa de bonecas que sempre tardou em aparecer. Mas que, nem por isso, a deixou de fazer sorrir…
Nota: Este texto é uma oferta para a minha mãe, que faz anos hoje – numa daquelas idades que se implementaram como de passagem para algo mais -, e com quem nem sempre estou de acordo, mormente pelo gostar tanto dela que me leva a querer contrariá-la tantas e tantas vezes. Mas apenas porque na magia das palavras e dos sentimentos sei que é quem me entende como mais ninguém.