Esta segunda-feira, ali pela hora de almoço, ouvi o meu amigo Luís Dores recordar na rádio que “em 1985, o tema “We are the World chegava ao primeiro lugar dos tops de vendas nos Estados Unidos…”, logo pensei que já se passaram 23 anos desde aquela altura e que, para além do natural desconforto que já sinto ao citar acontecimentos com mais de duas décadas, uma dura realidade se impõe: pouco ou nada mudou desde então. Em relação à canção em si, que pouco ou nada dirá às gerações mais recentes, excepção feita a verem, amiúde, grupos de “maiores de 30 anos” (não pensaram que ia mesmo escrever aquilo, pois não?...) a entoá-la com nostalgia numa paragem nocturna qualquer, convirá dizer que o álbum, gravado em Janeiro de 1985, juntou 45 dos maiores nomes da música norte-americana de então e celebrizou o “hino” em benefício das vítimas da fome em África, cantado pelo grupo “USA for África”. O “universal” single, as vendas do LP (uma designação já em total desuso) e o respectivo video renderam cerca de 55 milhões de dólares. Foi Michael Jackson quem organizou a gravação da música, escrita em conjunto com o seu amigo Lionel Richie (lembram-se da colecção de latas de Pepsi-Cola?...), tendo ambos juntado as suas vozes às de nomes como Harry Belafonte, Cyndi Lauper, Diana Ross, Tina Turner, Ray Charles, Paul Simon ou Stevie Wonder, todos sob a orientação de Quincy Jones. Sete milhões de cópias foram vendidas só nos Estados Unidos, tornando-o num dos singles mais bem sucedidos de todos os tempos. À iniciativa seguiram-se eventos como o Live Aid, no Verão do mesmo ano, conceito criado pelos músicos Bob Geldof e Midge Ure, que no Natal do ano anterior tinham formado a “Band Aid”, onde Sting, Bono e demais deram voz ao sucesso “Do They know it’s Christmas? ”, regravado há pouco tempo. Mas a onda solidária continuou com os hispânicos e sul-americanos “Voces Unidas” a entoar “Cantare, Cantaras” (com as vozes de Julio Iglesias, Roberto Carlos, Placido Domingo ou dos jovens Menudo, entre tantos outros…) e até a produção lusa levou a cabo a união de artistas para cantarem “Um abraço a Moçambique”. Os anos 80 estavam ao rubro em termos de produção musical e a vaga solidária angariava fundos para combater a fome nos países africanos. Ainda hoje é impossível ouvir alguma destas faixas, e especialmente ver as imagens das gravações conjuntas, sem perceber que a boa vontade e a generosidade estavam ali, assim como povoam outros exemplos mais recentes de músicas feitas com o intuito da solidariedade. Mas, infelizmente, os dados (mais ou menos actuais) vão tirando fulgor à esperança, e dá que pensar uma breve análise aos números arrepiantes (apenas e tão só…) da pobreza e da fome mundo fora…
Mais de 800 milhões de pessoas são vítimas de subnutrição crónica ou grave, sendo a maior parte delas mulheres e crianças de países em vias de desenvolvimento. O flagelo da fome atinge mais de 750 milhões de pessoas nos países em desenvolvimento, 27 milhões nos países em transição (como a ex-União Soviética) e 11 milhões nos países (ditos…) desenvolvidos. 54 milhões passam fome na América Latina e nas Caraíbas, e se a América do Sul registou uma redução do número de subnutridos, que passou de 42 para 33 milhões, já na América Central registou-se um aumento próximo dos 20%. As (eternas) crises económicas na Argentina e no Brasil fizeram regredir vastas regiões, alastrando a fome. A situação é também particularmente dramática no Afeganistão, onde cinco a dez milhões de pessoas estão ameaçadas de fome, estendendo-se o manto de pânico à Coreia do Norte, à Mongólia, à Arménia, à Geórgia ou ao Tajiquistão. No Médio Oriente (segundo projecções do Banco Mundial contra a Fome) os cenários mais graves vivem-se na Palestina e no Iraque, onde o número de pobres disparou, estimulado pelo crescimento de conflitos sociais, com a intervenção bélica dos Estados Unidos a provocar vítimas e a agravar ainda mais a tragédia. Quanto ao número de pobres não pára de crescer e passou já os 300 milhões de pessoas. Um relatório da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento mostrou que, nos últimos 30 anos, o número de pessoas a viver com menos de um dólar duplicou nos países menos desenvolvidos. E a tendência é de que aumente até 2015, quando os países menos desenvolvidos poderão passar a ter 420 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. São números, distantes da nossa realidade, mas que fazem pensar a cada mão estendida ao pé da porta ou a cada injustiça social que se comete próximo de nós. E mais do que um extenso rol de factos indesmentíveis e tristes de conhecer, fica um ponto da situação, que pretende olhar apenas e tão só o futuro. Mesmo recordando o passado. É que, cantando ou não, e cada vez menos crianças, continuamos a ser o mundo…e a não chegar para o tornar melhor…
"USA for Africa" - We are the World.
"Band Aid" - Do they know it's Christmas?
"Voces Unidas" - Cantare, cantaras