A actividade jornalística tem, amiúde, compensações interiores. Que mais não sejam do foro pessoal e do engrandecimento da alma. Aliás o contacto, mesmo que esporádico, com pessoas notáveis é, já de si, atractivo.
Vem isto a propósito da apresentação à imprensa, fez ontem uma semana, da peça “Palhaço de mim mesmo”, que trouxe aos Açores Ruy de Carvalho e o seu filho João. O que seria uma normal conferência de imprensa, e acreditem que algumas se assemelham a um bocejo incómodo, de um acontecimento cultural – no caso inserido no Festival de Teatro de Angra do Heroísmo que, este ano, e bem, se estendeu à vizinha Praia da Vitória – acabou por se transformar numa animada conversa, com jeitos de tertúlia, onde se focaram o Teatro, a vida, o nosso país e as suas angústias e, mais que isso, se trocaram olhares. Quentes e ternos, como gosta o coração.
De Ruy de Carvalho se calhar já tudo se disse. Aos 79 anos recusa o estatuto atribuído, mas apenas por maneira de ser, pois tem um percurso rico em diversas actividades e são poucos os que não o ligam, de forma umbilical, às três pancadas de Moliére por mero reflexo. Da conversa muito há a reter, e tive mesmo a felicidade de gravá-la na íntegra, registo que ofereci aos actores após a sua actuação de Sexta-feira. Desde os elogios rasgados à realidade cultural da Terceira e dos Açores, passando por um abrir claro de sensações relativas á representação da peça em questão, até ao simples contar de episódios mais ou menos marcantes. É que, em “Palhaço de mim mesmo”, os actores desempenham o papel de uma mesma pessoa, embora em diferentes estágios. O Original de Paulo Mira Coelho, jornalista e genro de Ruy de Carvalho, é de facto um texto intenso, onde a procura do princípio da pureza se apresenta em diferentes formas, mas sempre encaminhando o espectador (que ainda não leitor da obra…) para uma viagem interior onde cruza diversas emoções numa particular sintonia com o descrito. Mas isto já aflorando a encenação da peça e o seu desenrolar na noite praiense. Da conversa de quinta á tarde fica uma memória de alcançar momentos fáceis e claros. Com a simplicidade que têm algumas das tais grandes pessoas em nos redimensionar a alma. Com o “bónus” de um excerto do “Monólogo do Vaqueiro” ali à beirinha de ser tocado. E, como pude confessar ao decano actor: “Dá sempre gosto ver um político com os olhos a brilhar…sem se estar a falar de orçamentos ou de contas para pagar”, tal era o deleite do edil Roberto Monteiro, feito espectador orgulhoso daquela hora e meia de passagem agradável.
E, no dia seguinte à noite, abriram-se mesmo as cortinas do palco da vida. Na sumptuosidade do Auditório do Ramo Grande pudemos presenciar um desempenho notável e de grande profundidade. Em todos os sentidos, refira-se. É que a acústica da sala lançava longe as vozes (possante, a de Ruy de Carvalho…sentida, a do seu filho…) dos actores. Se fechássemos os olhos o transporte á intensidade era feito num ápice. Uma daquelas peças a que ninguém ficou indiferente. E isso conferia-se, rosto a rosto, na saída do público. Dei por mim, isolado da sala, com as únicas três pessoas que tinha ao meu lado de olhos mareados. Os meus não, estava absorto na potência de alguns trechos, mas de uma forma menos exteriorizada. E a viagem pelas andanças da vida de Fausto (assim se chamava o “duplo” protagonista da peça) foram-se sucedendo, marcando, aqui e ali, os corações presentes. Espantosa a forma como aquele texto se revelou transversal á maioria das pessoas com quem falei. Muito fruto da interpretação de ambos, mas também porque a sua ambiguidade assim o provocou.
E depois houve uma emocionada e repetida ovação ao actor, ao mestre, que se despediu com a graça de um nariz de palhaço. Aquele que sempre somos ou desejamos. E a conversa suave e descomprometida no camarim. Onde até pequenas falhas da actuação foram ditas com a naturalidade de quem gosta de se dar. Por amor á arte que escolheu como vida. Um amor que só temos a agradecer…