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Nem sempre o tempo e a vida nos deixam escrever quando queremos. Assim sendo e estas linhas vêm já com uns dias de atraso, e o mais curioso é que acabam por se referir também ao tempo e à vida. À forma de bem aproveitar o primeiro, de modo a passar com gosto pela segunda. Assim mesmo. Fez Sábado duas semanas que passámos mais de 24 horas sob o auspício da música. Tudo começou por um simples pedido de credenciação para as 24 Horas TMN, no Estádio do Dragão, que acabou por levar-nos aos caminhos mais "in" da jornada, onde a pompa e a parvoeira dão as mãos, mas sempre ao som da dita música. Sobre o certame quase escrevi falando dos Reammon, dos Xutos, de Gomo, dos Blind Zero ou do Pensador Gabriel. Mas acabei por não o fazer. Por falta do tempo que a vida vai consumindo. Pois foi já na recta final do evento, quando os N*E*R*D* aqueciam uma das suas últimas actuações, que nos pusemos dali para fora em busca de confirmar um gosto. E lá paramos, para os lados de Matosinhos, no renovado B-Flat (um dos pontos quentes do jazz nortenho e não só), onde iria actuar Paulo de Carvalho em jeito de Quinteto. Lá chegados, e perante alguma audiência e a quase totalidade das mesas reservadas, restava um cantinho (daqueles onde se vê tudo) com uma mesa alta e dois bancos. Parecia de encomenda. Depois da presença de um jovem esforçado (ainda em busca do timbre ideal, pareceu-me) a cantar Palma, Trovante, e passando brevemente por músicas de Vera Cruz, e eis que ia começar a função. Confesso que estava expectante, pois nunca vira Paulo de Carvalho ao vivo, e reconheço no cantor uma grande parte da nossa recente realidade musical. Lembro-me vagamente de o ver nas ruas de Angra, quando "Dez Anos" era o seu emblema em palco de roupa branca, numa altura em que actuou no teatro local. E o que vimos, ouvimos e sentimos (passando o tempo e crescendo em vida) foi um rol puro e solto do que se precisa para ser feliz. O cantor estava feliz em palco e o formato do espectáculo assenta-lhe como uma luva. Canta, toca e conversa com os presentes em tons de recado à alma e de nostalgia sem exagero. De argola prateada na orelha esquerda, e revelando saúde física e uma voz (diz ele e confirmamos) melhor que antes, o presente da noite foi passear um pouco por cerca de 40 anos de músicas, palavras e tanto mais. Do corpo do dito Quinteto faziam parte os seguintes músicos: Armindo Neves - Guitarra, maestro e autor de quase todos os arranjos tocados; Nelson Canoa - Piano, teclados e acordeão; Ruca Rebordão - Bateria e percussão; Nando Araújo - Baixo, e que cantou duas músicas de um trabalho em que revê a sua África natal; e Paulo de Carvalho que, relatando os dotes, mais do que cantor sou músico, toco voz. Do alinhamento da noite fizeram parte temas como O Homem das Castanhas, O Cacilheiro, Lisboa, Menina e Moça ou Os Putos - dos quais é autor embora muitos não saibam -; recuou-se aos anos 60 para um original dos Sheiks, que só agora ganhou vida; Nini dos Meus Quinze Anos e Dez Anos foram passagem obrigatória; Mãe Negra e os Meninos de Huambo foram entoados em conjunto com um público que queria tanto cantar; Gostava de Vos Ver Aqui - dedicado aos nossos "vizinhos" de mesa Maria João Abreu, José Raposo e João Baião, saídos do Sá da Bandeira depois de mais uma "Rainha do Ferro Velho" -; uns toques e retoques noutras composições de lembrar e, para encerrar com sentido e numa versão inédita, um E Depois do Adeus, apenas com voz e piano, que fez levantar mais ainda ânimos, vozes e emoções. Foram quase duas horas em intimidade com um cantor e autor que pugnou sempre por uma posição "à parte" do sistema contra o qual começou a lutar antes da Liberdade. Liberdade essa da qual diz estar alheada a música portuguesa, a tal que "de vez em quando até passa na Rádio". Polémico quanto baste e sempre presente na hora de dar as mãos por causas e fins meritórios, Paulo de Carvalho é um pouco a antítese da estrela, sabendo-se que no firmamento da nossa música o seu nome brilha com letras gordas. Logo para um autor que não gosta de "coisas balofas, rivalidades nem rótulos, que se cruzam todos os dias com o mundo do espectáculo". À minha Anita apenas respondeu, face a um "desculpe, que sei que é chato as pessoas quererem sempre falar com os artistas", depois de dois beijos, com um presente "Ah, mas isso é para os artistas, eu não sou artista". Ai, isso é que é, e bem o sentimos naquela noite em que o tempo e a vida correram sob o auspício da música, num daqueles fins-de-semana em que nos sentimos crescer. Já agora o espectáculo que, depois do B-Flat rumou ao À Capela (Coimbra) e ao Speak Easy (Lisboa), chama-se tão só "Vida". E é daqueles feitos à medida para qualquer um dos sumptuosos auditórios terceirenses.