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Por histórias contadas pelos mais velhos sei que as casas da família da minha Avó, no Porto Martins, sempre foram de uva afamada e vinho cuidado. Pois como esses tempos foram de outros a minha iniciação nas hostes vindimeiras foi do lado oposto da ilha: nos Biscoitos. Em criança ainda me lembro de pisar uvas na adega do Dr. Machado, mas foi mesmo no lado norte dessa Terceira que me perdi de amores por valas e curraletas! Por mero acaso, e depois de uma actuação fora de tempo da nossa marcha das Sanjoaninas, acabei por pernoitar ali pela Canada do Porto, na casa dos meus vizinhos de Angra, o Marquinho e a Patrícia. O dia amanheceu com as marcas de uma noite dançada, mas havia vários cheiros no ar. Um deles era da cozinha e da famosa feijoada que a Dona Bernardete estava em modos de preparar, o outro era a uva ansiosa pela colheita e exalava pela vinha do Senhor Aurélio, a única pessoa a quem deixo que me chame Luís Miguel, pois já nem me soaria bem ouvir-lhe a voz se me dirigisse só o segundo nome. Num ápice estava na vinha e já o João das Iscas me ensinava a melhor forma de quebrar o cacho sem esparrinhar as pérolas de Baco. Que dia aquele! Foi um fartote de trabalho, de risos, e uma descoberta que, afinal, me faria guardar no coração a proximidade daquela data nos anos seguintes. É que, como em muitas outras, na vindima do Senhor Aurélio o trabalho era até à hora do almoço. Depois
depois viesse o assunto a baile que logo seria discutido com afinco, o mesmo com que se abria mais uma cerveja fresquinha, e tão parecido com o que fazia trincar um pedaço de entrecosto ainda quente da brasa.
Falava-se de toiros, do vinho-de-cheiro dos Biscoitos (aliás a adega ostentava o epíteto de Confraria do Vinho de cheiro), e aquelas paredes, meias com a alegria, não deixavam derreter ao sol o esforço de mais uns litros de suor
e de tinto! Nas várias vindimas a que fui a memória encarregou-se de ir seleccionando imagens e recordações que perdurarão até que, a páginas tantas, as mesmas se vão confundindo com outro dia de orgulho naquela e noutras casas das redondezas: O Domingo do porto. Mas isso já serão contas de outras histórias. Hoje é da vindima que me quero lembrar. Dos muitos cestos recheados da mais pura rocha e que os mais afoitos nunca pararam de transportar às costas. Das chegadas esperadas da Orquestra do Mendonça, onde o hábil percussionista marcava o ritmo fazendo uso dos seus tarecos, Mini-tarecos e da piada de assobio. Dos dias em que o Zeca Freitas ia para a varanda fazer de capataz da empreitada, revelando mais jeito na função do que na apanha da uva (!). Dos dias em que o Domingos desaparecia por minutos e surgia ao fundo, no torreão, fantasiado do personagem da altura. Das desgarradas atrevidas, onde me via aflito para debater com o Gouveia, pressão que já se atenuava quando o adversário era o Fagundes. Do dia em que, em pose com o Sr. João Garcia, cantámos a Rua do Capelão ao som hábil de um violão bem tocado. Dos eternos ensaios de um grupo de veteranos (na idade
) aprendizes de tocadores, que nunca chegaram a rumar ao Oriente desejado. Do encontro sistemático de gerações, cujas diferenças de idade se iam pondo como o sol ao mar com o avançar da tarde. Das tardes ruidosas com todos os nossos amigos de touradas e Carnavais, especialmente os que apareciam à hora de almoçar com o tradicional -Não deu para vir mais cedo
. Das deslocações às nocturnas da Vila Nova que davam sempre direito a uma digressão pelas canadas dos Biscoitos ou das Quatro Ribeiras. Das tigelas de barro onde se provava o resto do vinho velho e da guerra para não deixar transbordar a garrafa de vinho doce que vinha até Angra
quando lá chegava! Do convívio, do são convívio que se vivia daquele portão para dentro e que tão bem soubemos manter, longe dele, ao longo dos anos.
Hoje a vinha está dividida e a vindima já não tem a dimensão dos últimos tempos, mas ficou uma marca em cada um dos muitos que por ali passaram em dia de levar a uva ao balseiro. A saúde e o vagar já não sopram como dantes mas é essa a marcha que torna preciosos aqueles momentos. Não podia deixar de fechar a prosa com uma das tiradas mais lembradas das vindimas daquela casa. Em certo ano, alguém perguntou ao Senhor Aurélio se não seria bom que a figueira da entrada desse dinheiro no lugar de figos. Ele não se desmanchou na resposta e disparou: -Pior era se desse cerveja
que aí é que eu tinha de dormir debaixo dela com a cartucheira na mão!...