Do dia em que vi um Lancia Stratos...(crónica)
Na passada semana, em pleno Parque de Assistência junto ao Estádio do Algarve, dei por mim rapidamente a pensar nas emoções e sentidos que me despertam aquele movimento e cores bem próprios dos ralis. A proximidade com os pilotos, neste último caso até estrelas do Mundial por lá andavam, a perícia dos mecânicos, a ansiedade dos responsáveis pelas equipas e tudo o que se passa naquela zona em particular. É que, mais do que nos troços, onde aí sim me delicio com a habilidade que é conduzir um automóvel de competição a alta velocidade (e em recinto ou local vedado para o efeito ), nas assistências ou parques fechados estou bem perto do encanto dos carros. Gosto muito de ralis, perícias, circuitos e tudo o resto, mas são os carros que me levam ao enlevo. Uns pelas suas formas e cores, outros pelo andamento que já quietinhos -fazem sempre recordar, outros ainda pela simples magia do seu barulho mesmo que ao ralenti
Tinha pensado desfiar agora a lista de carros que mais me marcaram nas diversas vivências que fui tendo pelos ralis, alguns até unicamente relacionados a pessoas amigas ou a episódios mais ou menos caricatos. Mas isso fica para a acesa actividade dos fóruns de discussão na internet, para uma conversa de café ou para uma troca de impressões em cima de um qualquer muro junto a um troço de um qualquer rali. Vou só revelar aquele que é o meu carro de eleição no mundo mágico dos ralis: o Lancia Stratos.
Tinha apenas quatro anos quando foi tirada a foto que ilustra este texto. Apesar de já quase alinhavar as leituras mais primárias, estava ainda longe de saber que passaria horas a ler e a reler as encadernações do Motor dos anos 70 que ainda hoje me fazem sonhar. Talvez porque o próprio jornalismo daquela época retratasse as coisas de outra forma, o que se compreende pois havia poucas mais maneiras de o fazer que através de uma boa reportagem e algumas fotos (a preto e branco, que a cores só as de top mesmo ). À custa disso fui-me familiarizando com aquele estranho bólide, cujas aventuras e sucessos apenas conheci por forma de letra impressa e bem do fundo das noites de Arganil ou do Marão. O Stratos da imagem era um lindo exemplar Stradalle (como diria um bom tiffosi ), azul-turquesa, e que estava estacionado junto à casa dos meus tios em Lisboa. Bem pertinho de onde hoje se ergue o gigantesco Corte Inglês e com aquele ar rebelde que logo fez parar o meu Pai e por acréscimo a mim! Nessa altura já me entretinha a declamar as marcas de todos os carros existentes na nossa Terceira, e que nem eram tão poucas como isso. Lembro-me perfeitamente de dois dos meus vizinhos mais velhos (ou, pelo menos, da geração acima ), o João Monjardino e o Zé Miranda, me irem inquirindo à medida que passava um carro na rua. Acho que não falhava um e havia até uma viatura em que brilhava pelo meu conhecimento: um já cansado DAF (julgo que era um Marathon) pertença de outro vizinho da altura, o sr. João Manuel Silva, ao qual poucas pessoas atribuíam a marca certa parece que estou a vê-lo
Mas voltando ao Stratos apenas para identificar melhor o modelo transalpino que me encheu e enche as medidas desde então. Nascido do traço genial de Nuccio Bertone, foi como mero exercício do estilista que o Stratos apareceu no Salão de Turim de 1970. Usava então o pouco potente V4 do Lancia Fulvia, mas a compra da Lancia pela Fiat, efectuada um ano antes, fazia antever a criação de um verdadeiro ás para as estradas do Mundo. Assim o Projecto Zero de Bertone, bem motorizado pelo V6 de 2,4 litros do Ferrari Dino, deu origem às necessárias 500 (embora ainda se diga que foram apenas entre 450 e 490 ) unidades para a homologação do colossal Stratos. Era um veículo exclusivamente construído para correr, e fê-lo em várias disciplinas distintas, sendo que atingiu resultados de relevo apenas nos ralis. E não o fez em ainda maior escala pois, para além de ser um campeão potencial, o Stratos era também um carro estranho e de difícil comercialização. A sua aerodinâmica cuidada e inovadora e a posição quase deitada dos ocupantes, aliadas às portas que eram a própria armação do pára-brisas (ou seja não havia portas laterais ) e ao interior quente e barulhento, não fizeram muitos adeptos. Além disso as curtas dimensões do carro e a sua elevada potência transformavam-no num veículo apenas conduzível pelos grandes pilotos. E vários assim o fizeram, engrandecendo a história do carro. A mistura do aço com a fibra de vidro foi outra das imagens de marca do Stratos, que tinha ainda vidros muito peculiares: o traseiro em forma de persianas, o dianteiro em semicírculo com um só limpador e os laterais eram duas janelas rectangulares de correr. As portas eram grossíssimas e tinham espaço reservado para a colocação dos capacetes. Só visto! A entrada de ar no tecto canalizava o fluxo para o motor, que era central, e para a asa traseira. Os dois faróis escamoteáveis, aos quais se juntavam por vezes quatro volumosas ópticas no capot da frente, ainda hoje são sinónimo de agressividade em qualquer viatura. O Stratos, e quem dele gosta, teve apenas a rara felicidade de passar à produção quase como estava no estirador de Bertone e dos seus ajudantes de campo. Depois foi o que se conhece e pelas mãos de mestres de grande talento: Sandro Munari, Raffaele Lele Pinto, Mauro Pregliasco, Jean-Claude Andruet; Markku Alen, Bjorn Waldeggard, Bernard Darniche, entre outros, foram alguns dos eleitos para conduzir esta lenda viva dos ralis. O Stratos é agora cobiçado como carro de colecção e o seu preço atinge somas elevadas. Em termos competitivos somou sucessos e vitórias desde a estreia em 1974 até 1981, ano em que Bernard Darniche ainda levou o lindíssimo Stratos azul Chardonnet à vitória na Córsega. Para a história ficam ainda as lendárias decorações Alitalia (branco, verde e vermelho) ou Pirelli (preto, branco e vermelho) num carro que ainda hoje faz sonhar pequenos e graúdos basta que o conheçam.
Já agora, e em jeito de fim de crónica, desde aquele dia de Dezembro de 1979 que não vejo um Lancia Stratos. Foi mesmo só aquele mas identifico o som do V6 Ferrari de letra!...