03.Fev.10
Ler dos outros... (crónica)
Comecei a ler por alturas do sismo de 80 e, que me lembre, até hoje nada me passou pelas mãos com letras, que não as juntasse ao primeiro olhar, lendo compulsivamente tudo, mesmo se só para uma primeira impressão. Depois da descoberta, feita e continuada em vários livros – menos que os desejados, mas a necessidade do ritual e da calma vêm-me dificultando o “consumo”…-, em milhares de jornais e revistas e, sem notar, a noção de escolha foi-se fazendo naturalmente. Tal como no prato deixo o melhor pedaço de carne ou de molho para terminar a refeição, tal como num gelado escolho o sabor preferido para a bola de baixo, assim nos jornais e revistas deixo de lado o que penso me vai interessar para ler com maior atenção. É a transposição para a leitura imediata do ritual de pulsação relaxada necessário para as páginas de um livro serem bem absorvidas pela alma. A crónica ou o conto serão no entanto as formas literárias que mais me dizem ao coração, decerto porque nunca gostei de coisas extensas e até porque a concentração contínua não é de todo um atributo que me favoreça. Gosto das coisas bem feitas, na hora, com bom aspecto e com as ternuras de escrita que até o mais violento texto pode por vezes conter. Outra coisa que fui aprendendo a valorizar foram as pessoas que escrevem e que eu conheço. Aí sim, consigo mais facilmente identificar-me com o seu modo de passar à letra os ares do mundo e da vida, numa descoberta de estilos que quase dispensa a confirmação da autoria dos textos. Podia fazer uma lista de nomes sonantes das páginas dos nossos jornais, afinal são eles a forma mais próxima que temos de aferir o que aqui trato, e ao pequeno-almoço não há mensagem que deixe de acompanhar o resto do dia. Mesmo que no seguinte vá para fazer um embrulho ou limpar qualquer coisa. José Daniel Macide, com quem só falei duas ou três vezes, será um nome incontornável, pela pena criativa e incisiva, mas também pela tal ternura que atrás referi. A um outro nível de mediatismo Joel Neto e Luís Filipe Borges são dois exemplos de como escrever faz vida e de como a necessidade de expressão pode conciliar-se com bons minutos para o leitor. Nos dias que correm quem não lê os espaços na imprensa de Luiz Fagundes Duarte, Maduro Dias, Victor Rui Dores ou do editor destas páginas João Rocha? Quem não seguia os “duelos” de Reis Leite e Francisco Coelho? Quem não recorda os parágrafos de Ricardo Melo, “Rei Bori”, Pedro de Merelim ou Coelho de Sousa? Alguém esqueceu páginas de Luís Filipe Miranda, António Bulcão e tantos outros? Duvido que poucos, assim como acredito que nos jornais locais sejam os escritos de opinião a suscitar mais interesse, e a mim especialmente quando têm história, quando criam e fazem criar, quando se afastam sem receios da luta político-partidária que nos acompanha diariamente. Ou quando baixam a cortina a profetas da desgraça ou aos – ainda mais irritantes… – subscritores da felicidade geral no país e na região.
Todo este prelúdio para destacar mais um livro lançado pela editora terceirense “Blu – Edições”, no caso uma colectânea, com cerca de 200 textos, dos 10 anos de crónicas que Cláudia Cardoso publicou no jornal “Diário Insular”. Um conjunto com sabor, com formas correctas e a preocupação vigente do bom português, do verbo na linha certa, da imagem plasmada à escrita e de uma passagem forte de sentimentos, mesmo se o tema é a actualidade política e sempre que o tema versa a vida, o fio comum das crónicas e dos dias. Professora e deputada, a Cláudia Cardoso é mais uma das pessoas que conheço e que escreve…
Ao lado de um cuidado gráfico e da já consagrada qualidade dos seus textos houve – na passada sexta-feira - uma apresentação feliz de uma obra que, como todas as colectâneas de crónicas, permitirá encher o vazio de tempo que a efemeridade dos jornais provoca. Mário Duarte, o editor, deu o mote de boa disposição para quem depois recordaria páginas de cor ou penumbra, de alegria ou lágrimas, de esperança ou de descrença, mas onde a poesia e a musicalidade se encontram. Reis Leite avançou pela visão sobre os cronistas, falou de realidade e ideologias, elogiou a terna forma de tratar o português, dando depois lugar à autora que, talvez de uma forma menos ligeira que o esperado, agradeceu. Passou pela família, pelos valores e pela ansiedade da folha em branco e da formatação dos 1800 caracteres. E depois houve música, com a feliz presença de Susana Coelho que, em trio, nos fez recordar outros anos e outros sons. Provando que também em baladas se podem marcar os tempos desta nossa passagem. Sobre as crónicas e sobre o livro, posso partir da vantagem de que já as lera todas. Como tanta gente. Sobre a Cláudia e sobre o tempo, sei que é pelas palavras que também partilha essa luta de quem sente, com mágoas e com sorrisos. Possivelmente os mesmos da rapariga que lembro, de chapéu, no velho Teatro Angrense, a ver um concerto dos "Onda Choc"...