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PORTO DAS PIPAS

miguel sousa azevedo - terceira - açores

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miguel sousa azevedo - terceira - açores

09.Nov.11

Girassóis de Paris

Girassóis...lá de longe.

E ela perguntou, com a voz doce e a pronúncia afrancesada, “pelos rebuçados, os caramelos, les bonbons…”, sem nunca desmanchar o sorriso com que se conheceram naquele verão. Era uma relação estranha – passivamente um amor estival… -entre duas pessoas de tão longe, de tantas diferenças, e contudo tão encontradas no olhar que reflectia o mar da pequena localidade. Cheia de pedra negra e plantada numa ponta da ilha alegre. Desde o primeiro beijo que a confusão o atacava, simplesmente porque mal falavam um com o outro. Não lhe percebia aquela língua melosa, cheia de repiques e palavras musicais…até que desatou a colar, aqui e ali, “post-its” com o nome de cada coisa em português, pedindo-lhe que a cada um fizesse corresponder igual referência naquele idioma açucarado de Paris. Paris, de França. Essa terra tão distante, onde girassol é tournesol, como o professor lunático das aventuras de Tintin, - d’aprés Hergé, isso já se lembrava da televisão e de uns  livros da infância… -, e onde as pessoas devem todas cheirar a perfumes caros e comer pequenos-almoços faustosos. E ainda antes dos girassóis, a ligação tinha começado por um punhado de amoras, apanhadas à beira da estrada e nos poucos lugares onde elas ainda sobrevivem. Por gestos, explicara-lhe então que a disseminação da praga do escaravelho-japonês – esticando os cantos dos olhos com os dedos…e pensando ser entendido – levara à escassez do doce e rubro rebento, transformando em
silvados o que antes apresentava um brilho de compota caseira. Como na vida, também os frutos e as flores se vão anichando rumo à morte, secando as tonalidades e os sabores. E novamente, como em quase todas as mímicas e conversas de duas semanas ardentes, desviara-se do assunto, nunca terminando uma explicação, e escondendo as razões de se sentir inferior pela simplicidade de ilhéu acanhado. Não conhecia as capitais da Europa, tão pouco outras cidades do reino português, fora apenas uma vez à América, visitar a família a Lowell, para além das ligações inter-ilhas com que se deliciava no verão. Ou melhor, nos verões que já tinham passado, pois nenhum alcançara sequer a quarta parte das emoções da estação que findava. E como gostava de a ouvir falar, mesmo sem perceber metade, mesmo se ao início não entendia nada de nada. Vinham-lhe cores nas palavras, os dentes pareciam peças brancas de um xadrez de enigmas, que relatavam jogadas antecipadas a um beijo que nunca aconteceu. O mistério seria o mote para tal encantamento e, possivelmente, estaria apaixonado por uma fantasia. Ou, como vira num filme recente - no avançado DVD com surround… -, só um amor não concretizado pode ser romântico. E, nesse verão que ainda corria, o seu romantismo tinha suplantado todas as ideias e expectativas possíveis. Foi a ouvir música alta, na velha atafona da casa dos avós maternos, e ao som das ondas do mar rebentado no calhau ao fim da tarde que se criou e firmou o entendimento. As palavras começaram a fluir de uma outra forma, original como os repiques das observações e soluços que as entremeavam, e fazendo nascer um quase dialecto de sentimentos que só os dois entenderiam pela vida. A certeza firme de todos aqueles episódios era apenas e tão só a sua marca pela vida, porque um amor de verão dura eternamente. Trocaram versos de canções avulsas, desembrulharam doces feitos por parentes carinhosos, salgaram os olhos ao mar posto e à despedida, dias antes dela acontecer. Tudo estava envolto numa névoa de luz densa, no sabor a sal com vento, no salto arredondado de uma borboleta riscada.

Chegado o horário temido, do voo de partida para outras paragens, e afincou-se a promessa de uma troca constante, tecnológica, melódica até. Afinal tudo assentava no bater do coração, no aplauso lento das pálpebras e das pestanas, as dele clareadas pelo sol grosso da maré, as dela espessas por um rímel de etiqueta. Até nesses contrastes, e quase embriagados pela atracção comum, perceberam que as suas palavras se transformavam em flores. Unindo os aromas e os afectos de dias com raízes, caules e metamorfoses causadas pelo ocaso.

E entretanto, já os girassóis estavam a querer tombar, deixando meio triste o recanto colorido que anualmente preenchiam. Mas esses, como as palavras, regeneram-se, e uns dias depois ganharão novos sentidos, provocando sorrisos por usar…

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